CANTO DO BACURI > Francisco Handa: Kujira Gami e os demônios interiores
Produzido em 1962, pela Daiei, Kujira Gami, que pode ser traduzido por Deus Baleia, foi uma produção em que os truques mecânicos, antes dos efeitos especiais existirem, se tornaram relevantes num tipo de cinema catástrofe. É o caso de Godzilla, criado pelo cinema em 1954, seguindo-se muitos outros. Mas em Kujira Gami, existe uma preocupação muitos mais próxima da realidade do que a fantasia de Godzilla.
Além desta tentativa de reproduzir uma baleia, com pescadores lutando contra ela, este foi um trabalho de grande beleza e profundidade em sua narrativa. A produção teve por direção Tokuzo Tanaka, com adaptação de Kaneto Shindo do original de Koichiro Uno. Filme em preto e branco, muitos são os figurantes que mostram suas caras enegrecidas pelo sol da praia, o sal impregnado nas fendas das rugas dos mais velhos. Tudo acontece numa aldeia de pescadores, expondo suas emoções em total selvageria, a coragem e todos os vícios sem necessidade de ocultá-los.
O Kujira Kami é um animal predador, que ameaça a tranquilidade dos pescadores. Trava-se de uma luta entre a baleia e os pescadores, que armados de arpões, sempre levam a pior. Existe na lente de Tokuzo Tanaka um olhar visceral, que dirige-se aos olhares dos pescadores, cujas órbitas prestes a saltar são redondas como bolas de bilhar. Aqueles olhos estão carregados de adrenalina, com uma música de fundo que crise tensão numa cena das mais emblemáticas do cinema japonês. Os olhos saltados são semelhantes ao de Hannya, um dos personagens do Teatro Noh. Hannya tem chifres bovinos e mais assustadores são justamente os olhos. Os olhos grandes são demoníacos, carregados de ciume e ódio.
Neste filme, no entanto, os olhos grandes são humanos. Nada é sobrenatural, apenas humanos, Se a ameaça vem do mar, que deve ser enfrentado pelo homem, o que se dá entre os homens em sua humanidade pode ser pior. Reconhecendo a violência humana como condição para a sua sobrevivência, totalmente aceita por aqueles pescadores, a baleia torna-se uma metáfora de toda força inconsciente presente em nós. Postos em condições precárias de existência, haverá o homem de revelar a sua natureza má, necessária, por outro lado, para a sua sobrevivência.
Enfrentar a baleia e derrotá-la é a condição que o chefe da aldeia coloca aos seus pescadores, Diz ele oferecer terras, posição e a filha em casamento a quem destruir o monstro marinho. Dois são os candidatos para a tarefa: Kishu e Shaki. O papel de Kishu foi de Katsu Shintaro e de Shaki de Kojiro Hongo. Kishu é um forasteiro, que ao chegar àquela aldeia, mostra seu temperamento irrascível e de imensa selvageria. O ator Katsu Shintaro tem um talento muito especial em representar papeis violentos, mais tarde em filmes de gangsteres.
Entre as cenas exploradas pelo diretor está a composição de homens, dezenas deles, numa dança em frenesi, corpos semi nus que brilham durante a agitação. São movimentos cadenciados, uma dança de guerra, quase primitiva, antes da organização da cultura e divisão entre o bem e o mal. Apenas o corpo em movimento, criando harmonia e uma energia das emoções em total palpitação. Muitas vezes estes corpos necessitam ser surrados numa briga a fim de inibir as emoções pela dor física.
A luta contra o mal, o próprio Kujira Kami, é muito mais corpórea do que possa imaginar. Não há tempo para moderações. Embarcando em suas barcas frágeis, os homens exibem os arpões amarrados a cordas. A baleia chega perto das barcas, desafiando, com seu corpo de couraça, que ao receber as pontas dos arpões não se verga, arrastando os homens para o mar aberto. Lá é o território da baleia, gaivotas acima, e as ondas em rebentação. Apenas o ferro afiado dos arpões são insuficientes para deter o animal, é preciso que Kishu vá até ela e fira o animal com a sua adaga. O trabalho é finalizado com a ajuda de Shaki, que penetra fundo a sua arma. Enquanto isso, a baleia deixa-se conduzir pelo seu destino. Um dia, seria o dos pescadores. Muitos outros teria sido da baleia. Nem ela parecia tão assustadora assim diante da fúria dos homens.
Porém a morte da baleia também significa a morte dos homens. Haverá sempre um mal maior do daquele que encontra-se fora. Toda luta contra este monstro é uma tentativa de acabar com o mal que nos anima. Escondido nas profundezas abissais da alma humana, poderá se manisfestar em condições apropriadas. Por isso, Kujira Gami apenas submergiu, uma vez morto, está prestes a renascer.
Este filme de Tokuzo Tanaka explora os espaços claros e escuros. Quase sempre em ambiente fechado, o escuro estará presente. São as sombras que revelam rostos marcados pelo suor, uma embriaguez provocado pela locura da existência dura, uma violência para sobreviver, o cheiro de macho e da fêmea em cio. Mas quando a sombra deixa de existir, em total claridade diante do homem há apenas o mar imenso e um monstro. Nada mais poderá ser oculto. As cenas em claridade mostram o que há de mais temeroso, tão diferentes quanto às das sombras.